“LOBSANG RAMPA - O POLÊMICO MÉDICO DE LHASA"
Postado em Mythos Editora
Lobsang Rampa
O Polêmico Médico de Lhasa
- Por Paula Calloni -
Às vésperas do lançamento da 34" edição de A Terceira Visão no Brasil, o escritor Lobsang Rampa ainda desperta polêmicas. Apesar de ter sido alvo de críticas severas - tanto quanto de glorificação -Rampa foi um dos escritores esotéricos que mais vendeu nos anos 60, e pode sei considerado um precursor da literatura do gênero.
Naquele dia, logo depois do pôr-do-sol, o garoto de oito anos foi levado a um aposento iluminado apenas por lamparinas. Um lama segurou sua cabeça com força. Sem qualquer anestesia, o instrumento pontiagudo foi sendo lentamente introduzido na testa, abrindo um orifício. Ali foi inserida uma palheta, que permaneceu no osso frontal por dezessete dias. A cirurgia teria estimulado a glândula epífise, ou pineal, que aumentou seus poderes de clarividência.
Impressionado? Você não está sozinho. Outras 132 mil pessoas, só no Brasil, não se esquecem desta passagem do sétimo capítulo do livro A Terceira Visão (The Third Eye), escrito por Lobsang Rampa em 1955.
O livro, publicado pela primeira vez pela editora britânica Secker & Warburg, foi um best-seller, com 80 mil livros vendidos em seis edições na Inglaterra, e 100 mil na Alemanha, além de edições com vendagens similares em toda a Europa e América do Norte.
Com todos os ingredientes de uma empolgante autobiografia, A Terceira Visão conta a vida de Tuesday Lobsang Rampa e sua formação como monge budista, até se tornar um lama e abade especialista em medicina cirúrgica. Aos sete anos, filho de um membro dos altos postos do governo tibetano, o pequeno Lobsang tem seu destino decidido por uma comissão de sacerdotes-astrólogos, que solenemente profetizam seu futuro durante uma grande festa realizada em sua c asa em Lhasa, no Tibete. O menino deveria ser encaminhado ao mosteiro de Chakpori e passar por um severo preparo ético, teórico, religioso
e aguçado através de provas de resistência física e mental. Ele deveria estar apto não apenas para exercer seu papel de médico, mas também para enfrentar um destino marcado por dificuldades, privações e sofrimento no Ocidente. Tendo como mestre o lama Mingyar Dondup, por quem nutre respeito e carinho quase filiais, Lobsang passa por inúmeras provações e conta tudo com detalhismo impressionante. Sua convivência com o décimo terceiro Dalai-Lama, suas experiências de quase morte, viagens astrais, clarividência; as expedições ao Planalto de Chang Tang a fim de conhecer e colher ervas medicinais; sua visita à "cidade morta" de uma civilização perdida, suas elucubrações quanto às diferenças culturais, sua fiel descrição de um ambiente carregado de mistério, inatingível à maioria das pessoas comuns, tudo isso faz da obra o tipo de livro que não se consegue mais parar de ler. A narrativa também é permeada por mensagens contra o preconceito: "É uma pena que tenhamos essa tendência para julgar outros povos segundo nossos próprios padrões". E de consolo: "A morte não existe. É um nascimento. Simplesmente o ato de nascer num outro plano de existência".
A história do menino tibetano que se torna um lama marcou época é foi um dos precursores da literatura esotérica dirigida às grandes massas. A linguagem, quase poética, de com preensão fácil, detalhista e cheia de prosopopéia, conquistou um público ávido pela necessidade de sonhar com uma realidade distante, misteriosa e praticamente inacessível.
Cenário Turbulento
Quase nada se sabia a respeito do Tibete, e o cenário sócio-cultural no Ocidente era tão nebuloso quanto a atmosfera impregnada de incenso dos mosteiros budistas. Na Europa do pós-guerra, a apreensão quanto ao domínio comunista dos chineses no Himalaia chamava a atenção para aquela região desconhecida do Oriente . Nos Estados Unidos, o livro de Rampa fez sucesso particularmente nos anos 60, em pleno movimento da contracultura.
A sociedade foi tomada por for
tes sentimentos antibeligerantes. Os hippies pregavam paz e amor, o uso de drogas era estimulado como forma de reação aos vícios da sociedade conservadora. No Brasil, a primeira edição foi lançada em 1968, pela Editora Record. Era o ano da rebelião estudantil contra o regime militar, uma época em que o espírito revolucionário criava campo fértil e receptivo a tudo o que significasse a ruptura do status quo. O interesse por tudo o que fosse oposto sublinhou as diferenças entre Ocidente e Oriente, e este último, com seu misticismo e religião, passou a representar o inatingível e o paradisíaco. Os livros de Lobsang Rampa encontraram ali um nicho perfeito, e o resultado foi a conquista de um público em sua maioria leigo, porém fiel, que reagiu e ainda reage ferozmente diante das dúvidas que cercam a figura do autor, morto em 1981 em Ontário, no Canadá. Curiosamente, como fora previsto em A Terceira Visão.
Uma Farsa?
Afinal, quem era Lobsang Rampa?
Relatos do guru Agehananda Bharathi, autor de Light at the Center: Context and Pretext of Modern Mysticism (1976), dão conta de que quando a respeitada editora britânica Secker & Warburg recebeu o primeiro manuscrito de A Terceira Visão, então assinada por um certo dr. C. Kuon Suo - pseudônimo adotado por Lobsang Rampa - surgiram desconfianças acerca de sua procedência. Cautelosos, os editores enviaram cópias da obra para o próprio Agehananda, profundo conhecedor das tradições orientais. Seis meses depois, seu veredicto: tratava-se de uma falácia que não deveria ser publicada. "Quando li aquele livro, as primeiras duas páginas deram-me a certeza de que o autor não era tibetano, e as dez páginas seguintes, de que ele nunca havia estado no Tibete ou na índia e não sabia nada sobre o Budismo, nem sobre o tibetano, nem sobre qualquer outro", contestou.
Cópias da obra tam bém foram enviadas a outros estudiosos do Tibete, entre eles Hugh Richardson, um dos últimos ingleses a residir em Lhasa antes da ocupação dos chineses, Marc Pallis, estu
dante britânico, e até mesmo Heinrich Harrer, autor do livro Sete Anos no Tibete, que ser viu de base para o roteiro do filme homônimo lançado em 1997. O filme, aliás, é uma deliciosa e intrigante confirmação de todo o universo descrito no primeiro livro de Rampa. As rodas de orações, o Potala, o telescópio do Dalai Lama, os chortens, está tudo lá. Detalhe: Sete Anos no Tibete foi escrito em 1953, e A Terceira Visão, em 1955.
Consultados acerca do manuscrito da primeira obra de Lobsang Rampa, tanto Harrer, quanto Pallis e Richardson foram da mesma opinião: o livro era uma fraude e seu autor, um impostor.
Suas admoestações pareceram não preocupar os editores que, independentemente das opiniões contrarias, e talvez antevendo o potencial de vendagem do livro, optaram por publicá-lo assim mesmo.
O que aconteceu é o que já se sabe: um sucesso de vendas, repercutindo no mercado editorial do mundo inteiro.
Para Harrer, Pallis e Richardson, um sujeito estranho de procedência duvidosa não tinha o direito de representar a cultura tibetana perante o mundo.
Excesso de zelo, ou Rampa seria mesmo detentor de conhecimentos cuja divulgação não interessaria a certos grupos? Seria de se esperar da superioridade ética de um lama revelações como "muros do Potala guardam-se blocos e blocos de ouro, sacos e sacos de pedras preciosas, e relíquias que datam de épocas remotíssimas?"
Pura indiscrição ou fantasia para atrair leitores incautos?
Seja qual tenha sido o motivo de preocupação, os três conhecedores dos mistérios tibetanos, decidiram contratar por conta e risco o detetive Clifford Burgess, que investigou a vida de Lobsang Rampa. Relatório final de Burgesss: o homem que se auto-intitulava lama tibetano jamais tinha estado no Tibete, não tinha uma gota sequer de aristocracia tibetana no s angue e era, na verdade, Cyril Henry Hoskins, nascido em Devon, Inglaterra, filho de um encanador. Nas horas vagas, freqüentava várias livranas e bibliotecas, dedicando-se a leituras eso
téricas, notadamente A Doutrina Secreta, de Mine. Blavatsky, e outros de seu discípulo, Charles Leadbeater, sobre teosofia, ambos pródigos pelas descrições da cultura e da religiosidade orientais.
Forçado pela mídia e pela opinião pública a se explicar, o autor foi perseguido e, por fim, declarou: seu corpo era o de um cidadão comum que, por uma espécie de mediunidade, fora tomado pelo espírito de um lama tibetano.
Abriram-se então controversas possibilidades para a explicação de Rampa. De um lado, leitores de espírito mais aberto, absolutamente crédulos quanto à versão da mediunidade, ou canalização; de outro, os céticos, convencidos de que o autor havia forjado sua identidade e escrevera não mais do que um resumo fantasioso do que havia absorvido nas tardes passadas dentro das livrarias. Talvez o próprio livro de Heinrich Harrer tenha fornecido a ele embasamento para tão detalhistas descrições.
Estava lançada a polêmica. Mas parecia ser tarde demais. Rampa/Hoskins já havia conquistado milhares de fãs em todo o mundo, incluindo guias espirituais e até mesmo personalidades altamente credenciadas do meio acadêmico. Se era um farsante, não se pode negar seu talento literário. O livro foi um fenômeno de vendagem e, queiram ou não, entrou para o rol dos clássicos da literatura esotérica.
Polêmica Sem Solução
Qualquer pessoa com mais de 30 anos de idade e interessada em esoterismo ao menos já folheou um livro de Lobsang Rampa.
Para Otávio Leal, estudioso metafísico do Instituto Holístico Humaniversidade, de São Paulo, A Terceira Visão é um livro agradável, mas deve ser encarado como obra de ficção. "O autor pode até ter passado por algumas daquelas experiências, mas operação para abrir o chackra frontal? Isso não existe" - analisa. Outra fonte, que preferiu não se id entificar, declarou que a linguagem utilizada pelo autor é extremamente metafórica, passível de interpretações equivocadas, e que trazer a literatura de Rampa para os dias atuais representaria um retroc
esso.
Não é o que pensam seus editores no Brasil. "Estamos reformulando aos poucos as edições antigas de livros que são bem-sucedidos comercialmente", afirma Sílvia Leitão, da Editora Nova Era. Ou seja, a obra de Lobsang Rampa ainda tem potencial de vendas.
Há, no entanto, uma grande possibilidade de que as experiências abordadas por Rampa em seu primeiro livro realmente não causem, hoje em dia, o tamanho estranhamento que causaram em 1955. Não há comparação entre o volume de literatura especializada no assunto disponível à época e o que se tem hoje. Temas como viagens astrais, levitação, clarividência, se tornaram populares e, à medida que essas informações alcançaram o grande público, este aprendeu a filtrar com mais sensatez aquilo que é estapafúrdio do que é plausível e até mesmo objeto de estudos científicos. Qual é a possibilidade de algum leitor dos dias de hoje acreditar na existência do abominável homem das neves, mencionado por Lobsang Rampa em A Terceira Visão? Em alguns momentos, ele parece subestimar a inteligência de seus leitores, com frases que chegam a ser infantis, como "...ainda bem que a invisibilidade está além da capacidade de quase todos, e que só poucos, muito poucos, a conseguem atingir".
Em outro trecho, parece querer sair pela tangente, não se aprofundando em temas como as diversas formas de ioga, por exemplo. Ele é incansável, no entanto, ao longo de todos os capítulos, nas suas tentativas de nos convencer de que tudo o que conta é absolutamente real, por mais absurdo que possa parecer. "Imensas coisas que no passado foram objeto de escárnio, como a televisão e o rádio, a passagem dos anos acabou por demonstrar serem possíveis e verdadeiras ...assim é com relação ao que estou contando", frisa o autor em vários trechos da obra.
A mesma preocupação em parecer confiável se deu em O Médico de Lhasa, seu segundo livro, no qual ele continua a história a partir do momento em que deixa Chakpori e parte para Chunking, na China, a fim de
complementar seus estudos de medicina e cirurgia. Ao narrar os primeiros contatos com os colegas da universidade e com seus professores, o inevitável choque cultural, o fantasmagórico encontro com a alma do mestre Mingyar Dondup, o autor mantém seu estilo detalhista. Nesse livro, Rampa também se aprofunda nos seus ensinamentos práticos, dedicando capítulos inteiros às várias técnicas de respiração e às viagens astrais, com uma preocupação quase "didática". Parece atender ao anseio dos leitores de A Terceira Visão, dos quais recebeu milhares de cartas do mundo inteiro, numa caixa postal de Fort Eire, no Canadá. Respondeu grande parte delas, prestando "consultas" gratuitas. Mas o fez a contragosto, como revela nessa nota publicada em um de seus livros: "As pessoas se esquecem de que pagam por um livro, e não por toda uma vida de serviço consultivo gratuito, pelo correio".
O Médico de Lhasa é pontuado por uma dose maior de realismo, como quando descreve o momento em que Rampa teria sido feito prisioneiro dos japoneses num campo de concentração. A crueza das torturas e execuções dá um tom sanguinolento à narrativa.
Se o objetivo era atrair mais leitores, não conseguiu. No Brasil, apenas 56 mil exemplares foram vendidos (ainda que este seja um número expressivo de vendas no Brasil). Aliás, nenhum outro de seus dezenove livros conseguiu o sucesso do primeiro. Sucesso que repercute até hoje. O próprio Dalai Lama (o décimo quarto), vez ou outra, ainda é questionado sobre as obras de Lobsang Rampa, ao que responde: "O que costumo dizer é que grande parte de seus livros é fruto de sua imaginação."
Louco ou escroque, verdadeiro lama ou farsante habilidoso, criticado pela maioria e glorificado por alguns leitores, a verdade é que Rampa, de alguma forma, foi um marc o para toda uma geração.
Impossível provar ou desmentir seus fantásticos relatos. A busca da verdade é um caminho individual. Ou, nas palavras de Galileu Galilei: "Não se pode ensinar cois
a alguma a alguém; pode-se apenas auxiliar a descobrir por si mesmo."
Se Rampa instigou milhares de pessoas a fazer suas próprias descobertas, como condená-lo?
A grande maioria dos críticos de Lobsang Rampa se rende ao fato de que ele trouxe o esoterismo para o palco das discussões populares. A descrição de suas experiências metafísicas e da cultura religiosa oriental vieram para a luz do interesse da opinião pública.
Este parece ser seu maior e irrefutável mérito.
Revista Sexto Sentido
Número 35
Páginas 24-28
Autora: Paula Calloni
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